terça-feira, janeiro 29, 2008

Sobrenatural

Estava, definitivamente, na merda. Perdeu o emprego quando o chefe descobriu que ele favorecia amigos nas licitações, e ainda por cima caguetou pro MP. A mulher largou ele quando descobriu a outra, a outra largou ele quando descobriu que era a outra. Como sempre pode piorar, deu petê no carro, que lógico, estava sem seguro, bateu cota extra no condomínio, apareceu infiltração no teto da cozinha, tava com o nome no serasa, no spc, na boca do sapo e o escambau. Pra completar a semana, abriu uma crise de hemorróidas que, puta que o pariu...

Frente a essa situação, fez a única coisa cabível: foi tomar um porre pra se esquecer de se lembrar da bosta de vida que tinha pela frente. Baixou na VM pra afogar as mágoas.

Chegando lá, escolheu um bar, até dos mais vazios, pediu uma cerveja e um conhaque, manjou o rabo de uma coroa que estava dando sopa e ficou na dele. Lá pras tantas, chega nele, pra sua surpresa, uma moça muito bem aprumada, destoando completamente das demais do recinto, vestida num taileur cinza claro, elegantemente discreto, muito levemente e com o cabelo preso um muito bem feito coque, se senta bem na sua frente, ajeita graciosamente sobre a mesa uma pasta de couro marrom e dispara:

“Boa noite, meu nome é Clara.Estou lhe observando há um tempo e me parece que o senhor está com um problema. Creio que eu possa ajudá-lo.”

“Caralho! Nem na Aeroporto puta fala assim! Tu tem classe, em filha?! Mas, ó só, perde tempo comigo não, que hoje tou só bebendo, viu, gata? Vai fazer a tua vida, vai.”

“Não se preocupe senhor Vicente, não trabalho nesse ramo. Posso dizer que trabalho com...incorporação. Ou recursos humanos, o que seria mais exato,e tenho uma proposta para você.”

“Cumé que tu sabe meu nome? Tu é polícia? Ou é advogada daquela filha da puta? Não vou pagar porra de pensão merda nenhuma! Aquela vaca ganha bem mais do que eu, a gora quer resolver a vida em cima de mim?. Aliás, ela vive jogando o contracheque dela na minha cara. Se ela quer dinheiro, que vá pedir praquele português filha da puta do pai dela! Já sei! Isso é coisa daquele galego safado! Manda ele tomar no cu que eu não tenho medo dele e...”

“Calma Vicente. Eu disse que estava te observando. Não sou polícia, nem advogada, embora muito admire esses profissionais. Também não estou interessada em resolver o problema de ninguém. Só o seu.”

“?”

“Senhor Vicente: o que o senhor quer?”

“Como assim, o que eu quero?”

“Esse é o meu trabalho. Eu realizo desejos, resolvo problemas, trago alívio aos aflitos e curo os doentes.”

“Tá bom! Fala aí, ô Gênio da Lâmpada! Só falta o bigode!”

“Fada Madrinha me agrada mais.”

“Tá bom, ô Fada Madrinha, bate tuas asas e vai sacanear outro. Essa porra é pegadinha ou o quê?”

“Não estou brincando, Vicente. Eu posso ajudá-lo.”

“Assim, de graça? Sem mais nem menos você chega num cara só pelo prazer ajudar? Tá bom...”

“Eu sou profissional e esse é meu trabalho, Vicente. É lógico que tudo tem um preço, e eu sempre recebo meus honorários. Disso tenha certeza. O que você quer, Vicente?”

“Tu tá de onda. Deixa de sacanagem.”

“Vicente: eu sei pelo o que você está passando. Sei do esquema das licitações. Não faça essa cara, é meu trabalho saber. Já passei por momentos difíceis também. Já estive na beira do abismo, como você, e acredite: você vai cair se não tiver alguém para segurá-lo. E eu estou te estendendo a mão. Basta você aceitar minha ajuda, e tudo se resolve.”

“E o que você ganha com isso?”

“Eu mesma, ganho uma comissão sobre o valor do nosso acordo. A empresa fica com a maior parte.”

“E que valor é esse?”

“É um valor justo. Não vou pedir mais do que você possas pagar.”

“Porra! Mas eu tou fodido! Não tenho mais um tostão no banco, bati com o carro, o apê tava no nome daquela piranha, como é que eu vou pagar.”

“Liga pro seu banco. Tira um saldo por telefone. Eu espero.”

“Eu não tenho dinheiro pra te dar!”

“Tem, mas não vai dar. Eu não quero. Encare como um presente.”

Quando desligou o telefone com um misto de alívio e espanto. Toda a grana que ele arrumou nos últimos dois anos estava lá, acrescida em três vezes do mesmo valor.

“Como é que...?”

“Não se preocupe, isso não faz parte do acordo.É um presente. Política da empresa. Então, Vicente, posso ou não ajudá-lo?”

“E a questão com o Mp?”

“Pode ser resolvida.”

“E o divórcio?”

“Ela pode desistir da briga judicial. Você também pode ficar com ela, ou com a outra, ou com as duas. Ou com qualquer outra. É uma decisão sua, não nos metemos nisso. Só resolvemos problemas. Todos os problemas, sempre.”

“E quanto eu gasto nisso?”

“Eu quero a primeira coisa que você teve em seu nome.”

Ele quase riu. Lembrou do primeiro bem que teve em seu nome: um Fusca 600, cinza, ano 82, que ele tomou de um cara que devia uma grana pra ele. Tinha vendido prum colecionador lá de Uberaba. Ia ser fácil comprar de volta, ainda mais com aquele saldo bancário.

“Só isso? A primeira coisa em meu nome? Negócio fechado!”

“Apenas isso. É o justo. Assine aqui, por favor.”

Tirou da pasta um papel e uma caneta, e estendeu a ele. Ele leu com cuidado. O texto dizia que em troca da resolução de todos o problemas de havidos ou por haver na vida de ...espaço para o nome do cliente, a incorporadora Luz da Manhã receberia apenas e não mais, o primeiro bem em nome do cliente, a saber...espaço para a descrição do bem. Dizia ainda ser o contrato insolúvel por parte do cliente, resguardando-se a empresa de qualquer arrependimento por parte do mesmo.

Assinou. Nunca antes na vida tinha assinado nada com tanto gosto. Pediu mais uma cerveja e devolveu o papel.

Clara recebeu o papel, preencheu com cuidado as lacunas, em uma caligrafia muito elegante, embora ilegível, e guardou de volta na pasta. Levantou-se, despediu-se e foi embora, levando a alma de Vicente.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Bem bacana, como sempre, parabens!!!

1/29/2008 12:34 PM  

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