domingo, agosto 27, 2006

Da série: FICÇÃO PLAUSÍVEL

VI

Veja bem, seu Delegado, eu desfilo na bateria desde que eu era molequinho, Doutor! Meu avô foi o primeiro presidente da escola! Minha avó era presidenta da ala das baianas, mas agora ta na Velha Guarda. Agora vagabundo vem com essa onda? Eles tavam é me tirando de otário! Eu não admito onda com a minha cara! Eu sou sujeito Homem, Doutor, cumpridor dos meus direitos humanos! O Doutor vai concordar comigo.

Foi o seguinte, Doutor: eu tava lá na minha, no pagode da tia Ceição, o coro comendo, feijoada, caipirinha, cerveja, caninha de barril e o diabo. Pois é, eu tou lá com meu cavaquinho, de olho nas meninas, e aí no minuto do comercial eu fui lá atrás no matinho. Quando eu tava voltando é que veio aquele pessoal falar com a minha pessoa. Era três minas e um cara meio esquisitão. Aí eles vieram com um papo de cultura nacional, nossas raízes, resistência, resgate, e não sei que mais. Só sei que eu não entendi porra nenhuma, só entendi que eles queriam que eu fosse tocar numa festa lá deles, e que ia ter cerveja arregada e era zero-oitocentos.

Até aí, por mim, beleza. Voltei lá pra mesa, os caras ficaram me alugando um pouquinho, mas como as minas eram mais ou menos e o cara aparentemente não tava pegando nenhuma das três, aliás, ele nem parecia muito chegado, sabe como é que é, né? Então. Fiquei lá fazendo uma social. Cantei uns sambas caprichando no gogó, bem de olho nas minas mesmo. Vai que uma delas se engraça? Essas minas riquinhas são meio chegadas num negão. Mas acabou que não peguei ninguém mesmo.

Aí eu fui lá, né? Chamei a rapaziada que toca comigo, tudo gente boa: Zezinho Sem Mãe no pandeiro, Tuninho Cagado no tantã, Paulo Gambá no repique de mão, Baiano Bom no reco-reco, agogô e essas porras, que ele não sabe tocar direito, mas é camarada, e Ruésleiston na aba, pra pegar cerveja pra gente. Não, Doutor, não tem apelido não. O cara já se chama Ruésleistson, botar apelido é sacanagem.

Aí, chegamos lá no bagulho. Tinha um porrão de gente, tudo meio esculhambado com cara de quem não toma banho. Mulher que é bom só tinha umas sete. Sinistro é que só tinha carrão no estacionamento. Fiquei até com vergonha do meu chevete. Aí tamos crentes que vamos chegar e começar a tocar, né? Mas tinha que esperar um pessoal lá falar primeiro, aí depois outro falar também, e só depois que todo mundo já tivesse metido a boca no microfone é que podia começar o pagode. Então tá. Mandamos o Ruésleiston ir lá fora e comprar uma garrafa de Pau Pereira pra beber com Fanta Laranja enquanto o pessoal falava lá. Aí nessa hora, depois que eu já tinha enxugado bem uns três copos, um cara lá, aquele esquisitão que foi no pagode me chamar, me chamou pra me apresentar como “um grande sambista, preservador das nossas tradições afros-descendentes” e coisa e tal. Aí tive que ir, né? Nego perguntava uns negócios aí e eu só conseguia responder “É isso aí, daqui a pouco a gente vamos tocar uns sambas pra vocês”.

Aí depois disso começamos a tocar. Quando veio a cerveja, a cerveja tava quente. Achei falta de consideração, mas tudo bem. Tocamos lá uns sambas conhecidos, o povo fingiu que conhecia e coisa e tal, e foi se animando, e bebendo mais cerveja. Nisso um cara lá botou a mão na minha perna e perguntou se eu queria mais cerveja e eu disse que queria e ele voltou com a cerveja e sentou do meu lado. Nessa hora eu tinha resolvido cantar um samba de minha autoria que era assim: “Eu saí na sexta feira, cheio de animação/ falei pra minha patroa que só ia buscar um pão/ mas parei pela birosca para molhar a palavra/ encontrei uma morena que meu cunhado pegava” e por aí vai. Nisso, o cara que tava do meu lado saiu pra pegar mais cerveja, e doutor, eu juro que eu vi, ele passou por outro cara e comprimentou o cara com dois beijinhos, doutor! Eu fiquei bolado, mas fiquei na minha, que eu era convidado e não ia falar nada.

Chegou a hora de intervalo, né? Puxamos o corinho de “Um minuto pro comercial/ Vou tomar uma gelada pra ficar legal” e paramos. Ne que paramos, eles resolveram começar de novo com a falação. E toca o povo a falar um monte de coisa sobre samba, que eu fiquei até meio sem graça, sem saber se eu tava fazendo alguma coisa de errado ou se eles é que não entendiam porra nenhuma de samba mesmo. Nisso, aquele cara que tava do meu lado e parece que era mesmo, e pelo que eu entendi era ele quem mandava ali naquela festa, começou a falar assim: “Eu gostaria de agradecer a presença dos nossos ilustres convidados, que se dispuseram a compartilhar conosco umas poucas gotas do seu vastíssimo oceano cultural popular. Esses são os nossos verdadeiros poetas nacionais, nefelibatas oprimidos pela conjuntura social pequeno-burguesa” e aí ele parou de falar por causa de que o Toninho Cagado, muito puto dentro das calças saiu gritando: “NEFELIBATA É A PUTA QUE TE PARIU!!!!!!” e já levantou metendo a mão na palhaça do menino. Aí, eu pra separar enfiei meu cavaquinho nos córnos de um loirinho que estava indo pra perto do Zezinho Sem Mãe gritando “faz ele parar, faz ele parar” que eu achei que ele ia se engraçar com o Zezinho e o Zezinho não gosta de dar confiança. O Baiano Bom, que tava enfiando o agogô na orelha de um sujeito lá também foi pra cima do loirinho e deu-lhe um rabo de arraia tão bem dado, que até Mestre Pastinha ia ter que admitir que na capoeira ele era o cara. Nessa mesma hora o Paulo Gambá tava dando umas bolachas num cabeludinho lá que tinha dito que éramos todos irmãos, e o Paulo não gostou, que na família dele nunca que teve uma bichona. O Ruésleiston, que não é bobo nem nada já tinha abastecido o chevete com umas caixas de cerveja, além de colocar quatro minas lá dentro e ligado o motor. Depois ele me explicou que só deu pra levar quatro minas que as outras três duas eram sapatão e a outra tava doidona de maconha e não tava entendendo mais porra nenhuma. Aí partimos com as minas pra comunidade e terminamos o pagode lá mesmo, no quiosque do Jorginho Jumento.

Isso foi na sexta feira, seu Delegado, e eu tou aqui hoje pra prestar queixa de assédio sexual contra aquele cara que botou a mão na minha perna, e também por causa de que como o loirinho usava óculos, ele quebrou meu cavaquinho e agora eu tou só com o banjo pra tocar.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muito bom!! Primeira vez que passo por aqui e gostei bastante. Voltarei com certeza meu amigo!!!

8/28/2006 2:51 PM  
Anonymous Anônimo said...

Hahahaha... Adorei!!! Não se atreva a parar de escrever!!!

Vai ter show nessa 4f??? Pede p Ana me avisar.

Bjss

8/28/2006 4:05 PM  
Anonymous Anônimo said...

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA

Com o perdão da palavra... caralho, me mato de rir!

"Ficção Plausível" foi o melhor título possível - eu sempre visualizo perfeitamente cada situação!

8/28/2006 6:41 PM  
Blogger Bia... said...

hahahaha
otimo!!!!
cada dia melhor!!!
po vc podia reunir isso num acervo e publica-los.. :P
:PPP
beijundas lindão

8/28/2006 10:40 PM  
Anonymous Anônimo said...

Perfeito Ricardo,
você deveria escrever um livro. O título do livro Ficção Plausível tb ficaria perfeito. Se resolver escrever uma cópia do livro já é minha.

Beijos

8/29/2006 11:01 AM  
Anonymous Anônimo said...

Putz !!! Além de extremamente admirável como pessoa, ainda me surpreende a cada novo texto.
Amei.
Para variar...estou rindo até agora...Queria ter lido ontem, mas diante de quatro audiências seguidas na 19ª Vara Criminal, a notícia do falecimento do pai do Alexandre Chacal e uma puta dor na coluna, não deu mesmo para ver ontem...ficou para hoje...mas valeu muito....
Beijos, meu querido amigo. Espero vocês no sábado.

8/31/2006 11:12 AM  

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