domingo, julho 19, 2009

A morte do senhor Gentil

Para compensar o poeminha ligeiramente deprê e gay.

Senti uma espécie de torpor, e de repente, bum, lá estava eu, em pé, na fila do paraíso. Confesso que tomei três sustos: o primeiro por perceber que tinha morrido, o segundo por saber que existe, realmente, vida após a morte e por fim por estar na fila do paraíso (depois de tudo que aprontei). Ainda tive a ousadia de supor que eu bem podia ter parado no paraíso islâmico (a história das virgens, vocês sabem), mas preferi nem alimentar tal pensamento, afinal eu não sabia a dinâmica aqui do outro lado, imaginem se lêem a minha mente e eu sou considerado herege (afinal, vai que estou no paraíso cristão)? Me mandam para o inferno grego, o hades, o qual, conforme levantei, é barra pesadíssima. Fiquei na minha e deixei essa confusão de paraísos para lá.
Resolvi puxar assunto, afinal fila onde todo mundo fica quieto não é fila. Comecei com o básico:_ Puxa, demora tanto pra fila andar né?
Dirigi-me ao senhor que estava a minha frente. Estava um pouco maltrapilho, não cheirava muito bem, mas tinha um olhar simpático._ E que lá na frente eles puxam a sua ficha para certificarem-se que não ouve erro ao nos mandar aqui para cima. Sabe como é né? Computador não é confiável nem aqui no Céu!
_ Puxa, mas o senhor é bem informado sobre os trâmites do pós-morte, heim?
_ Já estive aqui mais de uma vez meu jovem, sou morador de rua, fui professor no passado – disse como que querendo dar uma certa dignidade a sua vida –, mas a bebida é uma desgraça na vida do homem. Enfim, a primeira vez foi por hipotermia, o SAMU me salvou, a segunda foi por coma alcoólico. Lá no hospital meteram glicose na minha veia, me deram choque, adrenalina, o de sempre, e voltei. Mas fiquei tempo suficiente para conhecer uma ou duas coisas aqui de cima.
Fiquei, confesso, impressionado com a desenvoltura do velhinho.
Virei para trás e vi uma moça belíssima, vestida num traje de gala, loira, pernas torneadas, olhos azuis. _ Olá, desculpe a intromissão, mas você me parece tão saudável, o que te trás aqui?
_ Meu noivo, ele achou que devia dirigir após uns tragos e veja só, deu no que deu. Batemos de carro, ele sobreviveu e eu, bom, não preciso terminar a frase, não é mesmo? Disse em tom pouco amistoso.
Bom, de mais a mais, estava começando a me ambientar ali, tomando ciência do espaço, meio que me acostumando com a idéia de estar morto, meio que atoleimado, caminhando vagarosamente no ritmo da fila, imaginando como estava sendo o meu enterro. Será que tinha muita gente? Será que estavam chorando muito? O que os amigos estariam falando a meu respeito? Putz, depois de um tempo notei a bizarrice dos meus questionamentos.
Lá pelas tantas chegou a minha vez. Cansado, com os pés doendo (isso mesmo, não pensem que depois de morto os pés não doem, porque doem) e bastante entediado fui ter com um jovem de asinhas.
_ Boa tarde. O senhor chama-se Gentil de Almeida Franco? Perguntou-me o anjinho barroco adolescente.
_ Sim, sou eu mesmo. E sua graça...
_ Minha graça é o estado de graça. Nós anjos além de não termos sexo não temos nomes meu filho
_ Mas é o Miguel, o Gabriel...
_ Membros da diretoria, tem regalias especiais.
Veja só, regalias especiais, quem diria, talvez algo ligado a tempo de casa, serviços prestados, sei lá. Fiquei curioso.
_ Então seu anjo, Miguel deve ter ganho uma tremenda promoção quando pisou no coisa ruim, né não?
_ Nem me diga, na época ele era operador de averiguação de pecados, pesava almas o dia inteiro, depois que venceu o lá de baixo virou gerente de marketing aqui do Céu. Falou em Céu, todo mundo lembra do filho do Homem e dele, Miguel. Cá entre nós, dizem que até o espírito santo ficou com ciúme.
Sabe, sendo bastante honesto, eu já estava gostando do papinho quando um acessor do anjinho chegou e cochichou uma coisa no ouvido dele. Seu ar tornou-se mais grave, circunspeto. Começou a digitar freneticamente no computador, imprimir páginas.
_ Algum problema seu anjo?
_ Parece haver um erro senhor Gentil, não era para o senhor estar aqui.
Caramba! Fiquei imaginado que me mandariam para a fila ou do purgatório ou, na pior das hipóteses, do inferno. Se a fila do paraíso já demorou um bocado, a destes lugares ia ser uma eternidade. Nem computador haveria de ter, devia ser tudo em ficha de papel cartão, guardada naqueles armários de aço. Comecei a me desesperar.
_ Pelo que parece senhor Gentil, sua hora não é agora, o senhor tem ainda que viver mais uns anos. Temos que despachá-lo de volta!
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, senti novamente um torpor e, bum, acordei na minha cama com a Creuza, toda descabelada, com a cara cheia de creme de pepino, me cutucando.
_ Levanta homem, que preguiça, Jesus! Vai logo que você tem que passar no banco pra pagar um monte de conta!
Puxa vida, não tive chance, vim direto pro inferno!

1 Comments:

Blogger Adriano Comissoli said...

Se no céu já é assim, imagine-se no inferno com a Creuza. Muito boa sacada do Inferno funcionar na base de cartão de papelão em arquivo de metal!
Opa!! o Arquivo Nacional é embaixada do Inferno então!!!

7/24/2009 11:53 PM  

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