segunda-feira, outubro 12, 2009

O mascate mulherengo

Ubirajara era um cara dos mais queridos por todos. Vizinhos, ex-colegas de escola, parceiros do futebol, familiares, todos eram unânimes em afirmar: Ubirajara era um cara e tanto, correto, fiel, grande pai de família, excelente marido, um sujeito ímpar. Iria fazer falta. Não era à toa, portanto, que seu enterro estava sendo um dos mais concorridos no cemitério da pequena Poncho Velho, uma linda cidadezinha no interior do Rio Grande do Sul de pouco mais de 2000 habitantes.
Bira, como era conhecido, trabalhara a vida inteira como mascate, percorrendo as porteiras mais distantes em busca de novas vendas para levar o sagrado leitinho das crianças para casa. Vendia lençóis, colchas, roupas femininas, artigos de cama, mesa e banho em geral, mercadoria fina e de qualidade, conforme apresentava aos clientes.
Um belo dia, na noite de um de seus retornos para casa, após uma temporada de quase um mês viajando, Bira sentiu-se mal e caiu. Nunca mais se levantou, foi uma temeridade. Da viúva ao padre, não havia alma na cidade que não estivesse inconsolável com a abrupta partida do mascate mais amado de Poncho Velho.
No velório, a viúva chorava baixinho num canto. As crianças, ainda pequenas, ficaram na casa de uma tia, pois a mãe não desejava que a última imagem que os pequenos guardassem do pai fosse dele deitado no caixão. Devia ter umas duzentas pessoas ao todo se despedindo do Bira.
Lá pelas tantas, aproximou-se do caixão uma moça muito vistosa, adequadamente trajada num vestido preto bastante elegante, debruça-se no caixão e beija a face do mascate. O fato passou despercebido a viúva, mas não ao padre Peixoto. O clérigo foi ter com a moça e entre-dentes lhe perguntou quem era. Para surpresa do velho pároco ela lhe respondeu:_ Eu e Bira morávamos juntos, padre. Lendo o jornal lá de Serra dos Vinhais, no dia de ontem, passei os olhos no obituário e vi o nome de meu Bira estampado em letras garrafais. Quase morri. Vim me despedir padre. Sei que aos olhos de Deus e da Santa Igreja, nós não éramos casados, logo não posso me considerar viúva, mas posso lhe garantir que nos amávamos muito.
Padre Peixoto engoliu em seco. Não sabia o que fazer. Se abrisse a boca a reputação ilibada de Bira chafurdaria na lama. Após muito refletir, decidiu tomar aquela resposta como uma confissão e, como estabelece os ditames da Igreja, guardar para si o que ouviu. Porém, meia-hora depois de ter tomado a decisão, vê entrar no velório uma senhora robusta, enfiada num vestido de chita remendado até não poder mais, com três crianças arrastadas pelos braços, pequenas, mirradas mesmo, com olhinhos assustados de quem vê a morte pela primeira vez._ Olha aí crianças, o pai de vocês. Homem bão, fez de um tudo pra nos tirar da miséria. Que Deus o tenha e de nós guarde misericóridia. Disse isso e chorou em profusão.
Essa não teve como passar batido pelo crivo da viúva, digo, a oficial. Levantou-se, sobremaneira irritada, e foi ter com a matrona choradora na beira do leito de morte do mascote pegador.
_ Quem, por Deus e Nossa Senhora dos Desajuizados, é a senhora?
_ Bah, sou a viúva do Ubirajara, e estes são nossos rebentos.
A confusão que se seguiu foi digna dos filmes pastelões dos Três Patetas. Não sobrou um único cravo inteiro no caixão do Bira, a matrona e a oficial se engalfiaram tal qual duas leoas disputando a carniça de uma zebra. O quebra-pau extrapolou o velório e foi continuar na rua, um cortejo de curiosos esqueceu o defunto e foi seguindo a arruaça que as duas mulheres iam fazendo. Quando ao redor do caixão só sobrou a reputação partida do mascate, a elegante mulher de preto, até então refugiada no banheiro, voltou a aproximar-se do caixão. Fitando os olhos vitrificados do Bira, sussurrou baixinho para que só a alma do mulherengo pudesse ouvi-la do outro mundo.
_ Sempre soube que tu não prestava. Mas adorava os vestidos que me trazia.

CEVDM

1 Comments:

Blogger Autora said...

"Mas adorava os vestidos que me trazia."

uhahuauha

ADOREI!

Muito criativo, em!

10/14/2009 1:12 PM  

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