quinta-feira, outubro 15, 2009

Fé escatológica

_ Querida? Querida? Acorda.
_ Heim, como, que foi, quem morreu?
_ Ninguém morreu, sabe o que é? Acordei assim, no meio da noite, com um peso no coração, um sei-lá-o-que me atormentando o peito...
_ Sandoval, você acendeu as velas de anjo de guarda? Acendeu as velas na casinha de exu? Olha lá homem, não pode vacilar com o além, vai que você tá com encosto? Quer que eu ligue para aquele programa do pastor? É agora de madrugada. O pastor Cleverson, lá do templo que eu estou indo, disse que o homem é poderoso, exorciza pela televisão, coisa de doido.
_ Ai mulher, já vem você com estas superstições, encosto o que! E da três batidinhas na mesinha de cabeceira.
_ Sandoval, só porque você é católico apostólico italiano...
_ Romano.
_ Não fica na Itália? Então. Só porque você é católico apostólico romano, acha que minha fé é coisa de ignorante. Bem que a cartomante que eu fui com a Matilde tinha me alertado sobre esse seu jeito besta de tratar o Deus dos outros.
_ Deus dos outros? Para de bobagem. Deus é um só, o seu e o meu. Jesus, que Alá nos proteja dessas suas idéias.
_ Já sei Sandoval, tenta aquela técnica de relaxamento que nos aprendemos no workshop do mestre sufi Satiranabanda. Tá lembrado, fomos mês passado.
_ É, não custa nada né.
Sandoval, após um esforço brutal para acomodar sua barriga entre o tórax e as coxas, sentou-se na posição de flor de lótus - na verdade, de tão esparramado, lembrava mais um ramalhete de batata, sendo o Sandoval a própria. Após alguns minutos de meditação profunda, irrompeu o silêncio da madrugada um som estrondoso vindo do íntimo de Sandoval. Estupefata e com cara de nojo a mulher indagou:
_ Que isso Sandoval?
_ Exorcizei a feijoada.
Nem precisou do descarrego.

CEVDM

segunda-feira, outubro 12, 2009

O mascate mulherengo

Ubirajara era um cara dos mais queridos por todos. Vizinhos, ex-colegas de escola, parceiros do futebol, familiares, todos eram unânimes em afirmar: Ubirajara era um cara e tanto, correto, fiel, grande pai de família, excelente marido, um sujeito ímpar. Iria fazer falta. Não era à toa, portanto, que seu enterro estava sendo um dos mais concorridos no cemitério da pequena Poncho Velho, uma linda cidadezinha no interior do Rio Grande do Sul de pouco mais de 2000 habitantes.
Bira, como era conhecido, trabalhara a vida inteira como mascate, percorrendo as porteiras mais distantes em busca de novas vendas para levar o sagrado leitinho das crianças para casa. Vendia lençóis, colchas, roupas femininas, artigos de cama, mesa e banho em geral, mercadoria fina e de qualidade, conforme apresentava aos clientes.
Um belo dia, na noite de um de seus retornos para casa, após uma temporada de quase um mês viajando, Bira sentiu-se mal e caiu. Nunca mais se levantou, foi uma temeridade. Da viúva ao padre, não havia alma na cidade que não estivesse inconsolável com a abrupta partida do mascate mais amado de Poncho Velho.
No velório, a viúva chorava baixinho num canto. As crianças, ainda pequenas, ficaram na casa de uma tia, pois a mãe não desejava que a última imagem que os pequenos guardassem do pai fosse dele deitado no caixão. Devia ter umas duzentas pessoas ao todo se despedindo do Bira.
Lá pelas tantas, aproximou-se do caixão uma moça muito vistosa, adequadamente trajada num vestido preto bastante elegante, debruça-se no caixão e beija a face do mascate. O fato passou despercebido a viúva, mas não ao padre Peixoto. O clérigo foi ter com a moça e entre-dentes lhe perguntou quem era. Para surpresa do velho pároco ela lhe respondeu:_ Eu e Bira morávamos juntos, padre. Lendo o jornal lá de Serra dos Vinhais, no dia de ontem, passei os olhos no obituário e vi o nome de meu Bira estampado em letras garrafais. Quase morri. Vim me despedir padre. Sei que aos olhos de Deus e da Santa Igreja, nós não éramos casados, logo não posso me considerar viúva, mas posso lhe garantir que nos amávamos muito.
Padre Peixoto engoliu em seco. Não sabia o que fazer. Se abrisse a boca a reputação ilibada de Bira chafurdaria na lama. Após muito refletir, decidiu tomar aquela resposta como uma confissão e, como estabelece os ditames da Igreja, guardar para si o que ouviu. Porém, meia-hora depois de ter tomado a decisão, vê entrar no velório uma senhora robusta, enfiada num vestido de chita remendado até não poder mais, com três crianças arrastadas pelos braços, pequenas, mirradas mesmo, com olhinhos assustados de quem vê a morte pela primeira vez._ Olha aí crianças, o pai de vocês. Homem bão, fez de um tudo pra nos tirar da miséria. Que Deus o tenha e de nós guarde misericóridia. Disse isso e chorou em profusão.
Essa não teve como passar batido pelo crivo da viúva, digo, a oficial. Levantou-se, sobremaneira irritada, e foi ter com a matrona choradora na beira do leito de morte do mascote pegador.
_ Quem, por Deus e Nossa Senhora dos Desajuizados, é a senhora?
_ Bah, sou a viúva do Ubirajara, e estes são nossos rebentos.
A confusão que se seguiu foi digna dos filmes pastelões dos Três Patetas. Não sobrou um único cravo inteiro no caixão do Bira, a matrona e a oficial se engalfiaram tal qual duas leoas disputando a carniça de uma zebra. O quebra-pau extrapolou o velório e foi continuar na rua, um cortejo de curiosos esqueceu o defunto e foi seguindo a arruaça que as duas mulheres iam fazendo. Quando ao redor do caixão só sobrou a reputação partida do mascate, a elegante mulher de preto, até então refugiada no banheiro, voltou a aproximar-se do caixão. Fitando os olhos vitrificados do Bira, sussurrou baixinho para que só a alma do mulherengo pudesse ouvi-la do outro mundo.
_ Sempre soube que tu não prestava. Mas adorava os vestidos que me trazia.

CEVDM

Homo Aeticos Amoralis

Confesso que não sou a pessoa mais certa do mundo, para dizer a verdade, não sou a pessoa mais certa nem do meu bairro, alias, nem da minha casa. Ainda assim, fazendo o mea culpa, devo dizer que estou cansado desse povinho do meu Brasil varonil. Aqui, em plagas tropicais, perdemos todos os limites da ética, da moral, do respeito ao direito alheio, não sabemos mais usar o por favor nem o muito obrigado, pedir desculpas parece ser um comportamento alienígena, atravessar na faixa de pedestre virou coisa de maníaco com TOC, estacionar com as quatro rodas na calçada uma regra invisível do código nacional de trânsito, estudar para prova algo incompreensível para os jovens alunos, enfim, vivemos num mundo de pernas para o ar, pelo menos da minha perspectiva. Mas talvez o problema seja isso mesmo, ponto de vista. Quem sabe eu viva numa ilusão e quem esteja de ponta cabeça seja eu e não o mundo. Já pensei seriamente nessa hipótese. Numa situação em que todos agem como se não existissem três milênios de filosofia diferenciando o certo do errado, existe uma boa possibilidade de eu estar interpretando de forma torta o mundo a minha volta, e pior de tudo, me achando o último dos moicanos, o bastião superficial de uma moralidade enterrada no pântano do farinha pouca meu pirão primeiro.
Digo isso porque hoje bateram no meu carro, dentro do estacionamento de um supermercado. No desenrolar do bafafa, as seguintes propostas me foram feitas pelo motorista e dois sujeitos que aparecerem depois: acionar o meu seguro – e que se exploda minha classe de bônus; dar uma parte do dinheiro de um prejuízo que não foi calculado e sair antes da chegada da polícia – sendo que eu seria acusado de realizar uma notificação falsa de acidente; não chamar a polícia porque o condutor do veículo que colidiu estava com os documentos vencidos. Quando eu, que estava até disposto a negociar, bati o pé firme em relação a feitura do BRAT, virei instantaneamente alvo de ameaças veladas do tipo: se for a justiça você vai demorar a receber; vamos ligar para um amigo que é major da PM; e por aí foi. Essa situação foi para mim uma espécie de epifania, passei a ver para além das sombras da caverna, aquela do Platão. O errado sou eu, é lógico. A verdade, de tão óbvia, me escapou durante muito tempo. Eu estou em descompasso com a história, sou um anacronismo bípede, caminhando em pé numa sociedade que rasteja. Sou uma criatura antinatural, condenado pela teoria da evolução das espécies desde o século XIX. Não me adaptei ao meio e por isso estou condenado à extinção. Um fim até certo ponto digno. Em alguns anos estarei em exposição n’algum museu de história natural, atrás de uma parede de vidro, sendo observado por crianças de escola que escutarão entediadas os comentários do guia: _ Este crianças, é o homo sapiens sapiens, nosso ancestral direto, evoluíram dentro do que eles chamavam civilização, organizados em torno de princípios éticos e morais. Foram extintos quando nossa espécie, o homo aeticos amoralis, se tornou dominante. Coitados, não suportaram nossa superioridade.
Enfim, tudo se resume a Galápagos e ao bom e velho Darwin, a ética e a moral não passam de acidentes provocados pela erudição de alguns escravocratas ociosos, servindo apenas para atrasar a escalada na hierarquia da natureza de uma nova espécie, mais forte e mais esperta, que não se prende a regras tolas e abstratas de convivência. Viva a conveniência.
O museu, de fato, é o meu destino, assim espero, iria detestar acabar com a minha cabeça exposta na sala de troféus de algum caçador.

CEVDM

Brasil, Matemática e a Venezuela

Brasil, matemática e a Venezuela

Somos 183.987.291 milhões de pessoas espalhados por 8.547.403 milhões de quilômetros quadrados. Com o auxílio de um lápis e de um papel faça a conta. Ficou difícil para você como ficou para mim? Então usa a calculadora. O resultado é aproximadamente 21. Pois é, se fossemos dividir o Brasil igualmente por todos, daria uma fatia de cerca de 21 quilômetros quadrados para cada cidadão. A matemática não mente, ela pode confundir, mas mentir jamais. Depois dessa simples conta, quer dizer, dessa conta, eu consigo entender ainda menos o problema da terra no Brasil, o porquê dos apartamentos de três quartos de hoje serem idênticos às quitinetes de outrora e os engarrafamentos megalômanos as grandes metrópoles, tudo fica mais opaco. Espaço parece não faltar. O povo culpa o governo, o mercado imobiliário, o desrespeito ao rodízio no trânsito. Para mim, levando em conta um pouco das boas e úteis teorias conspiratórias, a concentração de terras, os micro-apartamentos e os engarrafamentos, tudo isso não passa de um grande lobby da Venezuela para que um dia venhamos a ter que alugar um pedaço das suas terras, transferindo assim uma parte da nossa riqueza para lá. Seria tudo, portanto, parte de uma estratégia comunista do Hugo Chávez para distribuição de renda no continente. Em todo caso, apesar dos contras, eu prefiro a Argentina, dizem que Buenos Aires é uma cidade linda.
CEVDM