quinta-feira, outubro 19, 2006

Da série: FICÇÃO PLAUSÍVEL

XII

Era um desses sujeitos meio assim-assim. Meio zen, meio natureba, meio babaca, meio wicca e meio viado.

Praticava ioga (iôga, ele corrigia), não fumava, bebia muito pouco, e mesmo assim só vinho branco e fazia tai-chi-chuan. Acreditava naqueles negócios de Energia, Saint German, Conhecimento oculto dos Templários e essa porra toda. Era vegetariano proselitista e comia com duvidoso prazer aquelas chanfanas a base de soja. Era fã de Legião Urbana, gostava de Oswaldo Montenegro e era simpatizante do Green Peace.

Um dia ele se meteu num retiro espiritual de uma dessas charlatanices de Nova Era. As regras do retiro eram espartanas: horário rígido, disciplina exemplar, silêncio absoluto, meditação compulsória e uma refeição por dia. Soja. Com arroz integral. Tinham que ser, já que o retiro, segundo o panfleto, objetivava o alcance do autoconhecimento pessoal a nível de indivíduo inserido no contexto bioenergético no seio da Mãe Terra.

No terceiro dia descobriu:

Que soja é uma merda.

Que arroz integral é intragável.

Que ioga dá dor nas costas.

Que estava faminto.

Que incenso fede pra caralho.

Que era viado mesmo.

Que banho quente é que é bom.

Que o mundo é uma bosta, mas a tecnologia é uma beleza.

Que tinha medo de lagartixa.

Que estava com piolhos.

Que sempre tinha muito mais meleca na narina esquerda do que na direita.

Que sempre que pensava em Deus, a imagem que lhe vinha à mente era um queijo provolone.

Que gostava de música sertaneja.

Que estava de saco cheio daquela porra.

E que queria ir embora.

E foi. Dois anos depois acabou se convertendo a Igreja Sara Nossa Terra. Hoje é pastor lá em Sulacap, mas ainda tem medo de lagartixa e não come queijo provolone nem a pau!

segunda-feira, outubro 16, 2006

Da série: FICÇÃO PLAUSÍVEL

XI

Eu tava de plantão no domingo. Domingo pra segunda geralmente é tranqüilo. O máximo que acontece é marido porrando a mulher, mulher porrando o marido, que aliás é o que mais tem lá no interior. Ou então uns moleque que ficam doidão e saem merdando pela rua. De vez em quando a gente mete um pigunço em cana só pra curar o porre, de manhã nóis libera o cara.

Aí tava lá eu, um cabo e dois soldados. O tenente tinha saído pra comer uma vagabunda lá que ele pegava de vez em quando. Aí tou eu lá acordado, sem but, calça aberta, pezão em cima da mesa do tenente, vendo os gols da rodada e toca a porra do telefone. Fiquei logo puto que ninguém levantou pra atender. Taquei o but em cima do Paixão! Onde é que já se viu? E a hierarquia? Aí veio ele sonado, atendeu e disse pro cara lá do outro lado falar comigo! Dei-lhe logo um esporro! Se fosse pra eu falar com alguém eu mesmo tinha atendido, né não? Aí a mulher lá começou a cacarejar, chorar, gritar que eu não entendia porra nenhuma. Apliquei-lhe a disciplina, disse pra ela: a senhora está falando com o sargento Barros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Faça o favor de se controlar e falar alto e claro. Caso o contrário vou ser forçado a enquadrar a senhora por desacato à autoridade! É o que eu falo sempre: militar tem que ter pulso firme, não pode ficar mamãezando os outros não. Foi só eu dar uma dura que a mulher se acalmou mais o menos e aí eu entendi qual era da situação: a filha dela tinha botado o marido pra fora de casa e o cara tava quebrando a porra toda lá querendo entrar em casa. Aí eu pensei: saco! Tem que ir lá. Mas até aí, pra mim tava beleza. Era só a gente chegar lá, pagar uma sugestão pro cara, trocar uma idéia com a mulher e acalmar a velha. Tranqüilo. Dá pra voltar antes do filme da Globo. Puta que pariu, malandro, se fosse aposta, eu perdia!

Nessa altura já tava todo mundo acordado por causa dos esporros que eu dei no Paixão e na mulher. Me arrumei, calcei o but e quando fui avisar que a gente ia sair o babaca do Paixão já tava com o M-16 na viatura! O Paixão pede esporro, né não! Mandei ele enfiar aquela merda no cu que essa porra não é Morro do Dendê, nem porra nenhuma! E depois o tenente ia me dar um esporro federal, que M-16 a gente só tem um e quem usa aquela porra é ele, que é superior!

Nisso, o Salgado tava vindo com um café pra gente antes de sair. Tomei o café e fui dar uma mijada. Quando voltei tavam os dois babacas, o Paixão e o Soares no banco de trás da viatura portando dois FAL! Chamei o Salgado e dei-lhe um esporro! Falei pra ele assim: Ô seu filha da puta, não tá vendo os soldados fazendo merda não?! Cumé que tu me deixa os caras pegar os FAL? Não me viu mandando o Paixão guardar o fuzil! Porra, Salgado! Quer portar fuzil vai pro 14º Batalhão, porra! Vai dar patrulha em Senador Camará, lá na Favela do Sapo, pra ver o que é bom! Caralho! Porra, Salgado! Tu acha que porque agora é cabo não é mais soldado? Manda aqueles babacas guardar o FAL! E manda um dos dois pro volante! Porra! Tomar no cu! Soldado querendo tirar onda de passageiro! Era só o que me faltava!

Aí fomos lá pra situação. Meu irmão, só te falo uma coisa: quase que eu me arrependi de não ter levado o fuzil! Quando chegamos lá na parada tava um berreiro da porra! Tu só ouvia os gritos da mulher que “pelo amor de Deus! Não faz isso Leléu! Ai minha Nossa Senhora!”

Agora imagina a situação: um sujeito do tamanho de um ônibus arrebentando a parede a machadadas! O cara tava abrindo um buraco na parede com um machado, meu irmão! E do lado da porta! Saquei de cara que o caboclo tava maluco, aí pensei: se eu chego de bicho, o cara vai partir pra cima da gente com o machado. Se o cara vier com o machado, eu vou ter sentar o dedo. Se eu sentar o dedo, vai dar merda. Essa porra de munição contada é foda. E não dava nem pra usar a outra, que a mulher ligou lá pro posto e nego vai manjar que foi nóis que passou o cara. Aí eu falei pra rapaziada: vai ter que ser na idéia!

No que eu falei que ia ter que ser na idéia o Paixão respondeu: Sargento, o cara é parrudo, tá maluco e tá com um puta dum machado na mão, acho melhor chamar logo uma ambulância, que idéia em maluco na adianta! Nóis vai ter que fechar o cara! Aí eu disse que não ia fechar porra nenhuma! Se é pra atirar atira nas pernas.

Nisso, parece até mentira mas eu juro que não é, o rádio da viatura começou a fazer um esporro do caralho e eu fui lá ver o que era, e era a ambulância do posto de saúde! Fiquei puto! Porra! A mulher ligou pra polícia depois ligou pra ambulância! Não adianta, velho, a população não confia mesmo no trabalho da gente...

Aí o doutor lá da ambulância disse o seguinte: “Oficial, güenta as pontas aí que já tamos chegando! Em cinco minutos tamos aí! Mas pelo amos de Deus não mata o cara que a gente não tem onde botar o corpo!”

Aí eu fiquei mais tranqüilo, que o doutor me tratou com o devido respeito. Respondi pra ele: Positivo e operante! Vamos conter a situação até a chegada do distinto!

Tudo bem que eu sou sargento, mas como eu tava no comando, e o doutor é civil, deixei essa passar na boa.

Antes de saltar falei assim pro Paixão: tu fica na retaguarda. Mantém uma distância segura e esteje com a arma pronta. Se o filho da puta vier de graça, enche ele de tiro. Mas não é pra matar não, viu? Mete três caroços, mas não atira pra matar, ouviu? Se tu matar o cara eu vou te foder rapidinho! Tu nunca mais vai sair do batalhão da Maré!

Saltamos da viatura e fomos chegando de mansinho. Quando abrimos a porteira o cara nos viu, deu uma olhada e continuou arrebentando a parede. Eu pensei: antes a parede do que eu, e fui chegando. Quando tava uns cinqüenta metros do cara eu falei pra ele: Aí, meu irmão, deixa eu te dar uma idéia! Aí o cara começou a gritar, mas não saiu da varanda:

DEIXA EU ENTTRRRRARRRRR NESSA POOOOOOOOOOOORRRRRRRRRRRRRRRAAA!!!!

EU JÁ TOU BOM ME DEIXA ENTRAR!!!!!!!!

JÁ BOTEI REMÉDIO JÁ TOU BOM DEIXA EU ENTRAR NESSA POOOOOOOOOORRRRRRRRRRRRRRRRA!!!!!!!

ELA DISSE QUE FUI EU QUE PASSEI PRA ELA MAS JÁ BOTEI REMÉDIO JÁ TOU-BOM QUERO ENTRAR EM CAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAASA!!!!!

Aí eu pensei: esse cara não tá bom pra conversar! Se eu chegar mais perto o cara enfia o machado nos meus cornos! Nisso chegou o médico perguntando o que que aconteceu. Aí eu disse: o cara tá maluco. Aí o doutorzinho cheio de idéia falou que isso ele tava vendo, ele queria saber por que que o cara tava maluco. Aí eu disse que não dava pra dar idéia no cara e ficar sabendo não. Ele se quiser que vá falar com o maluco, que eu não tava ali pra tomar machadada de ninguém.

Aí o médico falou que eu era foda e que muito ajudava quem não atrapalhava. Fiquei com vontade de autuar o filho da puta por desacato, mas como o maluco tinha visto o médico e tava chegando junto com o machado na mão, achei melhor sair de banda.

Aí o maluco chegou de disse: DOUTOR, O SENHOR É MÉDICO? Aí o outro respondeu que era e o maluco começou a falar:

DOUTOR, É QUE ELA NÃO TÁ QUERENDO QUE EU ENTRA EM CASA POR CAUSO DE QUE ELA DISSE QUE EU PASSEI DOENÇA PRA ELA! NÃO SEI NÃO DOUTOR É UM NEGÓCIO AQUI NO PIRU, MAS EU JÁ BOTEI REMÉDIO, JÁ TOU BOM! TOU SIM DOUTOR. JÁ BOTEI REMÉDIO!

Aí o médico perguntou que remédio que ele tinha botado e o maluco respondeu: DETEFON COM FUMO DE ROLO! EU BOTEI DETEFON COM FUMO DE ROLO DOUTOR, EU JÁ TOU BOM! FIZ BEM DOUTOR? NÃO TOU CERTO? O SENHOR QUER VER?

Aí o médico: “Fez bem, fez bem, tá certíssimo! Não, não precisa mostrar não, o senhor fez o certo. Mas pro remédio fazer efeito, o senhor tem que tomar uma vitamina!”

Aí o maluco começou a gritar de novo: TÁ VENDO MULHER?! TÁ VENDO? EU FIZ CERTO! EU FIZ CERTO! O DOUTOR FALOU QUE EU FIZ CERTO! SÓ TEM QUE TOMAR VITAMINA QU’EU JÁ TOU BOM! VITAMINA! DOUTOR: O SENHOR TEM VITAMINA? ME DÁ VITAMINA! EU QUERO A VITAMINA! TÁ VENDO?! EU FIZ CERTO! DETEFON COM FUMO DE ROLO! EU JÁ TOU BOM! ME DÁ UMA VITAMINA!

É nessas horas que você vê que cada profissão tem um estudo, e o que que é um bom profissional. Até nem tava mais puto com o médico, que eu vi que o cara era fera mesmo. O cara chegou na idéia e dominou o maluco. Se fosse por mim, eu já tinha passado o cara! Mas é aí que tá a diferença das profissão, né não? Aí o médico falou assim comigo: “se ele se assustar com a injeção, você seguram o cara” e foi saindo pra ambulância e chamando o maluco: “chega aí pra tomar a vitamina! Mas deixa o machado aí, que a vitamina é injeção no braço!” e não é que o maluco largou a porra do machado? Aí fomos atrás dele lá pra ambulância.

Chegando lá o médico tava preparando uma seringa, que puta que pariu, parecia uma garrafa de cerveja! E ele tava falando assim, meio difícil, acho que pra enganar o maluco mesmo: “nesses casos, a posologia medicamentosa precisa ser potencializada por uma substância catalisadora, entendeu? Pois é, as propriedades terapêuticas do detefon e do fumo de rolo ficam muito mais fortes quando combinadas com essa vitamina aqui, como? Que vitamina é essa? É vitamina T-T. Dá o braço aqui, esse não, me dá o outro, isso!” meteu aquela agulha do tamanho dum bonde no braço do maluco.

Meu irmão, mas foi na hora! O olho do cara virou e antes do doutor tirar a seringa do braço dele o bicho tava no chão! Ajudamos o médico mais o motorista a botar o cara dentro da ambulância. Quando a gente tava pra sair, o médico pediu carona. Mandou o motorista levar o cara pro hospital de Itaperuna e entrou na viatura. Aí fomos em silêncio até a cidade. Chegando no posto médico, o doutor agradeceu o bonde. Aí eu perguntei pra ele: Doutor, vem cá, de repente não era bom agente ter uma vitamina dessas na viatura? Num outro caso como esse, pode ser que adiante nosso lado né não? Como é que era o nome da tal vitamina?

Aí é que se vê o jogo de cintura de um bom profissional! O doutor olhou pra mim e disse:

“Vitamina T-T! Tomou, Tombou!”

É o que eu digo sempre: é de profissionais assim que o Brasil precisa!