quarta-feira, janeiro 30, 2008

Meu Tipo Inesquecível (lamentavelmente)

Eu tava lendo aquela revistinha sem vergonha que é a tal de Seleções, e me deparei com essa coluna: Meu Tipo Inesquecível. Conhece essa revista não? É aquela revista americana pequenininha, cheia de nada, com umas matérias absurdamente sem sentido ou utilidade, tipo: Histórias da Vida Real, ou Como o Meu Porquinho da Índia Salvou Minha Avó de uma Enchente. Vale à pena ler.

Pois é, tava lendo aquela joça, e como ninguém lê essas coisas impunemente, um pensamento estúpido me pegou pela orelha: quem é meu tipo inesquecível?

Porra! Pensamento mais sem sentido, pensei eu. Mas aí já era, quando cismo com um pensamento, essa porra fica me perturbando até eu resolver o problema que ele me apresenta. Mais informações sobre essa minha mania no post “A Coisa”, neste mesmo blog, vai lá ver que eu espero aqui, toma aí o endereço: http://mangangavamarela.blogspot.com/2006/03/coisa.html

Viu? Eu não disse que esperava. Beleza, então vambora...

Pois é, nessa de lembrar quem é meu tipo inesquecível resolvi expurgar logo essa agonia e vim escrever. Pensei nos clássicos: minha esposa, pai, mãe, irmã, tios e tias, primos, demais parentes, agregados e aderentes, conhecidos e amigos, personalidades mais importantes dos últimos dois séculos e em um monte de gente, que no fim das contas, passou em brancas nuvens pela minha vida. Mas não era bem isso...

Pois é, escrevendo isso aí em cima que eu me dei conta do que eu estou procurando, olha só: na tal da revistinha, essa coluna sempre apresenta boas memórias e lembranças ou lições de vida que quem escreve (geralmente celebridades) têm ou guarda sobre o seu tipo inesquecível (não obrigatoriamente, mas não raro, celebridades). Meio piegas, né? Parece babação de ovo, né? É que é babação de ovo mesmo. O negócio é ficar bem na fita.

Acontece que eu tou pensando o contrário. Tou pensando naquelas pessoas que, de uma forma ou de outra me atazanaram, e com isso, marcaram minha vida. Vai dar trabalho! Gente que nem eu, que de nascença é mal-humorada e anti-social por convicção, quando pensa em gente chata, lembra logo às dúzias! Vem de tudo! Vizinho mala, chefe chato, parente filho da puta (quem pariu, não tem culpa) colega pentelho e cê-dê-efes em geral, síndicos (como esquecê-los!) mulheres infelizes e inconformadas, pessoas sensíveis, inteligentes e criativas, porteiro fofoqueiro, bebum inconveniente, aluno puxa-saco, professor escr... PUTZ!!!

É isso! Meu tipo inesquecível é um professor! Suas aulas eram inesquecíveis, ou são, sei lá se tá vivo, e seus métodos pedagógicos, no mínimo, eram baseados no Directorum Inquisitorum. Fui aluno dele da quinta à oitava série, com bis na sétima. Professor J**ls*n, lecionava Ciências num colégio de um bairro aí, entre dois Engenhos.

Em tempo: peço que compreendam esses asteriscos aí. Não vou colocar as vogais no nome do cara, que eu não tou afim de pendengas judiciais, sabem como é? Juiz, advogado, fórum e esse papo de debaixo de vara, sei não, acho meio desagradável, vocês entendem, não?

Não sei se vocês sabem, mas existe um tipo de professor que confunde Paulo Freire com Maquiavel, sabe como é? Não?! Eu explico, péra aí, deixa eu pegar os dois livros, rapidinho, só pra ler a orelha. Péra aí. Pronto, voltei. Olha só: segundo o primeiro, deve-se respeitar o saber do aluno, e tornando-se mestre ao ensinar, construindo, junto com o aluno, o conhecimento. Meio tipo assim teologia da libertação, aquele papo de “o caminho se faz ao caminhar”. Não à toa o livro chama-se Pedagogia da Libertação, sacou? E em primeiro lugar, para o segundo, é o seguinte: é preferível ser temido a ser amado, posto que o medo sempre causará respeito e o amor confunde-se com fraqueza. Esse livro chama-se “O Príncipe” e é dedicado a um governante que o autor achava um merdinha (nem essa piada esses caras entendem!Caramba!).

Mas por que cargas d’água eu tou falando nisso? Bom, talvez o digníssimo leitor ou a graciosa leitora não saibam, mas eu sou professor. De quê? De história, minha filha, de história. E acho, inclusive, que meu tipo inesquecível é justamente esse cara por sermos, horribile dictu, colegas de profissão. E tenho esse cara como um modelo profissional. Sempre penso nele, ou ao preparar minhas aulas ou ao ministrá-las.

Vou explicar como esse modelo profissional funciona.

Quando estou em dúvida sobre qual o melhor método, ou melhor dinâmica de aula, ou quando me assola qualquer dúvida quanto o que fazer para tornar minha aula mais produtiva ou agradável, eu penso: o que o J**ls*n faria? Aí, eu faço o contrário. Sempre funciona. Eu disse sempre, sem exageros, exceções, imprevistos ou cagadas afins. É assim mesmo, batata!

É isso mesmo, querida, você matou a charada. Por isso que eu gosto dos meus leitores, são todos inteligentes. É um modelo às avessas. Um modelo do que não fazer. Diferente, né? Mas eu não sou muito certo das idéias mesmo...

Mas o que ele fazia que eu não quero fazer? Já explico. Mas olha só: não vou perder meu tempo explicando meus métodos pedagógicos. Vou perder o tempo de vocês explicando os métodos pedagógicos dele, e vocês, espertos como são, vão saber o que eu não faço. Ah! Vocês querem saber como eu faço? Tá bom, matriculem-se no meu curso, que eu não tou aqui pra trabalhar de graça! Onde já se viu? Quer mole, vai comer mingau!

Pra começo de conversa, o cara tinha um comprotamento sádico. Via-se, nitidamente o prazer que ele sentia em atormentar os alunos. Sabe aquelas pessoas fracas, que se sentem fortes ao atormentar alguém mais fraco ainda? Experimenta dar um pouquinho de poder, um pouquinho só, prum cara desses, e solta o sujeito no meio de um monte de moleque que, por mais filhos da puta que sejam, são só crianças. Agora imagina a miséria que um infeliz desse não faz.

Munido desse “enorme” poder, o cara chegava em sala de aula, sem um bom dia sequer, espanava com os diários um suposto pó-de-mico, que, supostamente, teriam aspergido sobre a mesa e a cadeira uns alunos em tempos idos, sentava-se, olhava para a turma e começava a chamada. E já na chamada, aproveitava para debochar dos nomes uns e para pôr apelidos em outros. Apelidos esses, geralmente baseados em alguma característica física ou no comportamento dos alunos, que, invariavelmente, causavam constrangimentos, e para dissabor do pobre do aluno, geralmente pegavam. Eu mesmo, carrego um apelido que este cidadão me deu aos 10 anos de idade. Já me acostumei, mas confesso que prefiro meu nome. Desnecessário comentar que eu me recuso a chamar qualquer aluno meu por apelidos, muito menos debochar de sobrenomes incomuns. Ou de nomes, já que a infinita criatividade do povo brasileiro muito contribui para a onosmática moderna.

Terminada a chamada, cumpria-se o ritual de apresentação das cópias. Esse cara tinha mania de cópia. Por qualquer dá cá aquela palha o cara apitava: “Filhinho(a), cópia!”. Por tudo, por conversa entre os alunos, por perguntar demais, por perguntar de menos, por rir de qualquer coisa, por pedir alguma coisa emprestada, por esquecer o material, por não ter feito um determinado trabalho, ou até por ter feito, mas não da maneira que ele queria, enfim, cópia por estar ali, vivo e respirando. O tamanho das cópias dependia de uma delicada equação entre o seu humor e a falta do aluno. Falta esta que era agravada ou diminuída conforme a primeira variável da equação. Esse ritual era assim: ele chamava os agraciados pelo nome, ou pelo apelido até sua mesa, recebia as cópias, fazia, geralmente algum comentário tipo, “vê se assim aprende” ou “depois te passo outra”, e os dispensava. Caso um ou outro aluno não tivéssemos feito as ditas cópias, ele dobrava a cópia, ou acrescia de us capítulos. Caso reincidíssemos, lá vinha a voz: “Zero pra somar com a prova, e dividir por dois”.

Começava então, a aula propriamente dita, com a correção dos exercícios da aula anterior. Sem se levantar, ele escolhia um aluno de disparava: Fulano responde a questão 1, depois responde o colega do lado, depois o colega de trás e assim por diante. Certo, certo, certo, errado, certo, certo, errado, não fez essa? Deixa eu ver o caderno! Filhinho, cópia! Página tal a tal! Sicrano, continua! Certo, certo, certo, filhinha, cópia! Só pra relaxar! Continua de onde parou! Errado, responde a seguinte! Errado! Você fez o dever? Deixa eu ver, traz o caderno! Tá tudo errado! Cópia!

Após a correção, a segunda parte da aula: o conteúdo da matéria. Essas aulas expositivas(?!) dividiam-se em dois tipos. O primeiro tipo era assim: “Abre o livro na página tal! Beltrano, começa do título!” aí Beltrano começava a ler, porque, se estrilasse tomava cópia, e continuava até o J**ls*n mandar outro aluno assumir a leitura. Lógico, que se alguém esquecesse o livro, já sabem, né? Infração gravíssima! Cópia e vinte pontos na carteira. Lá pelas tantas, em determinadas passagens ele orientava: “sublinha isso aí!” e a leitura continuava. O ideal de dever cumprido para ele era que pairasse sobre a voz do aluno leitor o mais brutal e absoluto silêncio. Tenho certeza, que se ele pudesse dava cópia pro motorista que passou buzinando, pro outro professor da outra turma, que falava alto, ou pro funcionário do colégio que tocava o sinal do recreio. E se eles reclamassem, era zero, para somar com a prova e dividir por dois!

O outro tipo de aula era o que eu hoje chamo de Daniel Azulay From Hell. Lembram desse cara? Só os mais velhos, né? Esse Daniel Azulay era um desenhista que tinha um programa na televisão, cuja proposta e maior atração era ensinar as crianças a desenhar. Eu adorava, tinha até uns livros dele! Sério! Aprenda a desenhar com Daniel Azulay. Não aprendi até hoje, nem com ele, nem com ninguém, mas enfim...

O cara, após a liturgia da chamada e o ritual das cópias levantava-se, sacava uns setenta e dois gizes coloridos (o plural de giz é gizes? Procurei no Aurélio mas não achei. Se não for, me corrijam aí embaixo, nos comentários) e começava a desenhar no quadro-negro (que na época era verde, e hoje é azul. Às vezes até branco, caso em que não se usa giz, mas uma canetinha cheia de frescura) com muito cuidado, muito capricho e muitos detalhes, representações de células, tecidos, órgãos do corpo humano e esquemas anatômicos de diversos animais. O cara até não desenhava mal. Tinha até um outro professor, meio mentiroso e misógino que se recusava a apagar o quadro, com seu paninho úmido, preferindo ditar a matéria a apagar o que ele chamava de “verdadeiras obras de arte, como iguais só há no Louvre!”

O problema é que algumas pessoas são canhotas das duas mãos, e não conseguem desenhar um círculo com um canudo! Aí, já viu, se ele resolvesse dar visto nos caderno, era um festival de cópias! Aliás, se alguém copiasse os desenhos em uma cor só, ele passava cópia também. E esses desenhos eram questão de prova! Tínhamos que decorar cada um deles detalhadamente, com todas as suas volutas, curvas e reentrâncias!

Não, minha filha, não tínhamos que desenhar na prova, tínhamos era que saber o nome de cada parte dos desenhos, entendeu?

Aliás, as provas desse cara são um caso à parte. Tenho motivos para acreditar que ele só montou prova uma vez na vida, de uma vez só, uma pra cada ponto da matéria. Como assim? As provas eram sempre as mesmas! Sério! Não mudavam uma vírgula de um ano pro outro! Existia até um pequeno mercado de provas de ciências nesse colégio aí! Os alunos da oitava séria passavam as provas do ano anterior para os alunos da sétima, os da sétima, para os da sexta e os da sexta para os da quinta e os da quinta não passavam pra ninguém, entubavam o prejuízo, que alguém tem sempre que se lenhar! Sério! Só mudava, às vezes, a ordem das perguntas, mas como sabemos todos que estudamos nesse colégio: a ordem dos tratores não altera o viaduto. No ano que eu repeti a sétima (em matemática, não em ciências, que eu tenho boa memória e sei desenhar, ainda que sofrivelmente), só não tirei dez em todas as provas porque eu tomava muita cópia e não fazia a maioria delas.

Quando eu comecei a dar aula e usar o J**ls*n como medida do que não fazer em sala, comecei a pensar: como é que alguém pode acreditar que é assim que se aprende? São tantas as resposta pra essa pergunta, que eu fico até tonto. E no fundo, mas muito no fundo mesmo, até sinto pena do cara. É um infeliz frustrado na profissião, coisa comum entre professores.

As universidades não formam ninguém para atuar no magistério. Somos formados para o Mercado, essa entidade medonha. Somos formados para a indústria, e temos como ideal de realização profissional trabalhar em uma fábrica de produtos químicos, ou num laboratório fodão, ajudando a criar soluções e curas do mudo e da humanidade, vendidos a preços módicos em qualquer farmácia ou drogaria. Somos formados para atuar no mercado financeiro, especulando e investindo com o dinheiro alheio e criando úlceras. Somos formados para calcular o peso de prédios construídos por pessoas que serão barradas em suas entradas sociais. Somos formados para nos encastelar na Academia, sermos Mestres e Doutores e Pós-Doutores em qualquer coisa altamente relevante para nossos egos, para viver de universidade pública, publicar artigos herméticos em revistas obscuras e orientar dissertações e teses que nem nós mesmos leremos, se não formos obrigados a isso. Resumindo, a universidade nos ensina que ser professor é ser um profissional de segunda categoria. Só é professor quem não conseguiu se inserir na fatia de ouro do mercado de sua profissão.

Outra hipótese pra explicar o comportamento profissional desse cara também é muito triste: o anacronismo. Não ser capaz de reconhecer que o tempo passa é a coisa mais triste do mundo. Na época em que ele estudou, realmente se ensinava dessa forma, com autoritarismo, onde cabia ao aluno ser um livro em branco, recebendo seu conteúdo exclusivamente por obra e graça do professor. Olha aí o nome: professor, aquele que professa o conhecimento. O que é um profeta além de um cara (geralmente meio doidão, mas vá lá) que sabe de uma coisa que ninguém mais sabe?

Por essas e outra que este texto aqui nunca vai entrar na Seleções. Eu não sou uma celebridade, ele também não. Também de não tem babação de ovo aqui, e esse texto é profundamente triste e pessimista.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Sobrenatural

Estava, definitivamente, na merda. Perdeu o emprego quando o chefe descobriu que ele favorecia amigos nas licitações, e ainda por cima caguetou pro MP. A mulher largou ele quando descobriu a outra, a outra largou ele quando descobriu que era a outra. Como sempre pode piorar, deu petê no carro, que lógico, estava sem seguro, bateu cota extra no condomínio, apareceu infiltração no teto da cozinha, tava com o nome no serasa, no spc, na boca do sapo e o escambau. Pra completar a semana, abriu uma crise de hemorróidas que, puta que o pariu...

Frente a essa situação, fez a única coisa cabível: foi tomar um porre pra se esquecer de se lembrar da bosta de vida que tinha pela frente. Baixou na VM pra afogar as mágoas.

Chegando lá, escolheu um bar, até dos mais vazios, pediu uma cerveja e um conhaque, manjou o rabo de uma coroa que estava dando sopa e ficou na dele. Lá pras tantas, chega nele, pra sua surpresa, uma moça muito bem aprumada, destoando completamente das demais do recinto, vestida num taileur cinza claro, elegantemente discreto, muito levemente e com o cabelo preso um muito bem feito coque, se senta bem na sua frente, ajeita graciosamente sobre a mesa uma pasta de couro marrom e dispara:

“Boa noite, meu nome é Clara.Estou lhe observando há um tempo e me parece que o senhor está com um problema. Creio que eu possa ajudá-lo.”

“Caralho! Nem na Aeroporto puta fala assim! Tu tem classe, em filha?! Mas, ó só, perde tempo comigo não, que hoje tou só bebendo, viu, gata? Vai fazer a tua vida, vai.”

“Não se preocupe senhor Vicente, não trabalho nesse ramo. Posso dizer que trabalho com...incorporação. Ou recursos humanos, o que seria mais exato,e tenho uma proposta para você.”

“Cumé que tu sabe meu nome? Tu é polícia? Ou é advogada daquela filha da puta? Não vou pagar porra de pensão merda nenhuma! Aquela vaca ganha bem mais do que eu, a gora quer resolver a vida em cima de mim?. Aliás, ela vive jogando o contracheque dela na minha cara. Se ela quer dinheiro, que vá pedir praquele português filha da puta do pai dela! Já sei! Isso é coisa daquele galego safado! Manda ele tomar no cu que eu não tenho medo dele e...”

“Calma Vicente. Eu disse que estava te observando. Não sou polícia, nem advogada, embora muito admire esses profissionais. Também não estou interessada em resolver o problema de ninguém. Só o seu.”

“?”

“Senhor Vicente: o que o senhor quer?”

“Como assim, o que eu quero?”

“Esse é o meu trabalho. Eu realizo desejos, resolvo problemas, trago alívio aos aflitos e curo os doentes.”

“Tá bom! Fala aí, ô Gênio da Lâmpada! Só falta o bigode!”

“Fada Madrinha me agrada mais.”

“Tá bom, ô Fada Madrinha, bate tuas asas e vai sacanear outro. Essa porra é pegadinha ou o quê?”

“Não estou brincando, Vicente. Eu posso ajudá-lo.”

“Assim, de graça? Sem mais nem menos você chega num cara só pelo prazer ajudar? Tá bom...”

“Eu sou profissional e esse é meu trabalho, Vicente. É lógico que tudo tem um preço, e eu sempre recebo meus honorários. Disso tenha certeza. O que você quer, Vicente?”

“Tu tá de onda. Deixa de sacanagem.”

“Vicente: eu sei pelo o que você está passando. Sei do esquema das licitações. Não faça essa cara, é meu trabalho saber. Já passei por momentos difíceis também. Já estive na beira do abismo, como você, e acredite: você vai cair se não tiver alguém para segurá-lo. E eu estou te estendendo a mão. Basta você aceitar minha ajuda, e tudo se resolve.”

“E o que você ganha com isso?”

“Eu mesma, ganho uma comissão sobre o valor do nosso acordo. A empresa fica com a maior parte.”

“E que valor é esse?”

“É um valor justo. Não vou pedir mais do que você possas pagar.”

“Porra! Mas eu tou fodido! Não tenho mais um tostão no banco, bati com o carro, o apê tava no nome daquela piranha, como é que eu vou pagar.”

“Liga pro seu banco. Tira um saldo por telefone. Eu espero.”

“Eu não tenho dinheiro pra te dar!”

“Tem, mas não vai dar. Eu não quero. Encare como um presente.”

Quando desligou o telefone com um misto de alívio e espanto. Toda a grana que ele arrumou nos últimos dois anos estava lá, acrescida em três vezes do mesmo valor.

“Como é que...?”

“Não se preocupe, isso não faz parte do acordo.É um presente. Política da empresa. Então, Vicente, posso ou não ajudá-lo?”

“E a questão com o Mp?”

“Pode ser resolvida.”

“E o divórcio?”

“Ela pode desistir da briga judicial. Você também pode ficar com ela, ou com a outra, ou com as duas. Ou com qualquer outra. É uma decisão sua, não nos metemos nisso. Só resolvemos problemas. Todos os problemas, sempre.”

“E quanto eu gasto nisso?”

“Eu quero a primeira coisa que você teve em seu nome.”

Ele quase riu. Lembrou do primeiro bem que teve em seu nome: um Fusca 600, cinza, ano 82, que ele tomou de um cara que devia uma grana pra ele. Tinha vendido prum colecionador lá de Uberaba. Ia ser fácil comprar de volta, ainda mais com aquele saldo bancário.

“Só isso? A primeira coisa em meu nome? Negócio fechado!”

“Apenas isso. É o justo. Assine aqui, por favor.”

Tirou da pasta um papel e uma caneta, e estendeu a ele. Ele leu com cuidado. O texto dizia que em troca da resolução de todos o problemas de havidos ou por haver na vida de ...espaço para o nome do cliente, a incorporadora Luz da Manhã receberia apenas e não mais, o primeiro bem em nome do cliente, a saber...espaço para a descrição do bem. Dizia ainda ser o contrato insolúvel por parte do cliente, resguardando-se a empresa de qualquer arrependimento por parte do mesmo.

Assinou. Nunca antes na vida tinha assinado nada com tanto gosto. Pediu mais uma cerveja e devolveu o papel.

Clara recebeu o papel, preencheu com cuidado as lacunas, em uma caligrafia muito elegante, embora ilegível, e guardou de volta na pasta. Levantou-se, despediu-se e foi embora, levando a alma de Vicente.